ensaio #001: uma cena em "Nights in Ballygran", episódio de Boardwalk Empire
Jimmy Darmody é, desde o primeiro episódio de Boarwalk Empire, série que ambientada no mundo do crime organizado nos EUA dos anos 1920, um sujeito ambicioso que faz tudo errado. Quer subir na vida, há anos é protégé de Nucky Thompson, magnata do crime em Atlantic City. Recém voltou da Primeira Guerra, tendo passado três anos fora, e não consegue acertar o passo, não consegue fazer nada de bom. Está sempre incomodado, como se pode ver na cena dos balões no primeiro episódio. Jimmy está numa grande festa, a que vai porque é onde o chefe dele reina, e na hora da grande comemoração balões pretos caem do teto. Todos vêem aquilo como uma chuva alegre. Jimmy só se sente oprimido, atrapalhado, surpreendido pelos balões, e até mesmo desrespeitado por eles.
Nisso faz lembrar um pouco o Fabiano de Vidas Secas na cena da igreja, onde sente-se oprimido pelas roupas, pelo olhar dos outros, que presume hostil:
"Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as velas acesas, constrangido na roupa nova, o pescoço esticado, pisando em brasas. A multidão apertava-o mais que a roupa, embaraçava-o. De perneiras, gibão e guarda-peito, andava metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se inutilmente por abanar-se com o chapéu. Difícil mover-se, estava amarrado."
Jimmy fica pedindo oportunidades a Nucky Thompson, que só responde: "estamos na América, trate de criar a sua oportunidade". Ele concebe e realiza um assalto a um carregamento de bebidas; o assalto dá errado e as consequências vão cair no colo de Nucky. Jimmy, querendo ajudar (planejava entregar a Nucky parte dos proventos do assalto), só atrapalhou. Em casa ele também é assim. A relação com a esposa está ruim. Tudo que ele faz dá errado, tudo o que fala dá errado. Compra um aspirador de pó com o dinheiro que conseguiu no assalto, além de outros luxos para a casa, num spree alegre de compras. Quando a esposa liga o aspirador, o filhinho deles se assusta, e ela desiste de usar o aparelho, que fica lá encostado, um lembrete do fracasso e da incompetência dele.
Uma hora ele, sombrio, comenta com a esposa: "Você sabia que hoje já existem armas que disparam 600 tiros por minuto?". Ao que ela só responde com um seco: "A gente costumava conversar sobre livros".
Por consequência do tal assalto que dá errado, Jimmy é expulso de Atlantic City. Deixa para trás mulher e filho (e logo depois que ele vai embora a esposa finalmente usa o aspirador pela primeira vez) e vai sozinho para Chicago, se hospedar no bordel de luxo/quartel general do chefão do crime daquela área, a quem oferece seus serviços. Lá Jimmy e uma prostituta se gostam, meio que namoram, e ela se apaixona por ele. A prostituta parece uma mulher delicada e simples. O amor dela pelo Jimmy também é delicado e simples, mas ele despreza o que lhe é oferecido. Ele, que acabava de se frustrar em casa pelo amor que sentia não receber da mulher (quando foi embora da casa inclusive desconfiava de uma traição dela). A prostituta vê o Jimmy tosco e gângster-peixe-pequeno e o ama. Não se ressente por ele não ser um garoto que fala de livros, por não ser o criminoso respeitado que gostaria de ser.
Por alguma treta de criminosos em que se mete já em Chicago, Jimmy sofre uma retaliação. Os integrantes de outra gangue queriam no mínimo espancá-lo, mas não o encontram no bordel naquele momento. Um dos capangas dessa gangue rival, porém, percebera em outra ocasião que aquela prostituta específica era namoradinha do Jimmy, porque ela expressara afeto por ele, um afeto de namorada, na frente desses inimigos, que anteriormente eram apenas adversários. Esse capanga então sobe ao quarto da puta e a come. A cena faz questão de mostrar a repugnância que ela tem daquilo, agora que o seu coração está com Jimmy; é uma repugnância resignada, calma. Depois que o gângster a come, desfigura o rosto dela com um canivete. Um curativo é feito no rosto da prostituta, e Jimmy fica cuidando dela acamada.
***
A cena em questão, no quinto episódio da primeira temporada, começa com Jimmy espremendo laranjas num copo para ela tomar. Ela toma o suco com láudano para melhorar a dor do corte. E um detalhe no início dessa cena, a princípio um detalhe banalíssimo, tem uma grande riqueza de construção de personagem. Jimmy está fazendo uma lambança ao espremer as laranjas. Ele é, lembrem-se, o cara que faz tudo errado. Então faz errado isso também. E comenta: "I'm making a mess of this", "estou fazendo uma lambança". E a prostituta responde: "Não tem problema. Eu gosto do cheiro" -- o cheiro das laranjas. Jimmy está revelado ali aos olhos dela como ele é, pelo menos naquele momento da vida: um cara que que não acerta em nada. Ela vê as lambanças pelas quais ele tanto se flagela, motivo pelo qual traz sempre um semblante tão sombrio e casmurro. Vê essas lambanças e diz: não tem problema. Ela gosta dele. As lambanças são só lambanças, só umas incompetências, mais nada. E Jimmy ignora isso, essa outra prova de que na frente dele havia uma mulher que o aceitava e amava.
Logo depois dela dizer que gosta do cheiro, ele comenta: "Laranjas no inverno, imagine só". E isso também é significativo. É ele quem espreme as laranjas. O suco das laranjas é da cor do sol que ilumina parte dessa cena. Do sol que ela vai mencionar metaforicamente depois, ao tomar um gole melancólico do suco cheio de ópio: "é como se o sol tivesse acabado de nascer", diz, descrevendo o efeito da droga. E ele é o sol no inverno na vida dela. Porque ela é uma prostituta, e a beleza que a tornava vendável acabara de ser destruída, e ela não tinha perspectiva nenhuma na vida, a não ser o amor pelo Jimmy, que a despreza -- não superficialmente, pois a trata com ternura, mas profundamente: não consegue enxergar nela uma possibilidade real de vida para si. "Laranjas no inverno, imagine só". Depois disso ele comenta: "laranjas vindas direto da Califórnia".
Ao que ela responde: "É uma longa viagem...", como quem diz: é uma viagem impossível. Assim, cabisbaixa, perdida em pensamentos:
E Jimmy nessa hora tem um pequeno voo de imaginação, e responde:
"Duas noites num vagão de trem e você está lá (na Califórnia), mergulhado no mar até a cintura". Como quem diz: apesar de longa a viagem, ela é possível, e o destino é bom. E ela olha para ele assim:
A metade não desfigurada do rosto sai da sombra e vai para a luz. Ela está voltada para todos os sóis ao mesmo tempo. Para o sol concreto. Para as laranjas de que Jimmy extrai o suco. Para o sol da Califórnia e de uma possível vida nova. Para Jimmy, com seus cabelos loiros, e para a imaginação viva dele — a imaginação do garoto que com a esposa só falava de armas. E nesse momento diz, com uma simplicidade total, com uma espontaneidade que talvez não tivesse se não fosse pelo ópio, mas ainda assim de modo singelo, sem histerias, como quem declara um fato: "I love you".
Jimmy está de costas, e congela ao ouvir isso. Vê-se que ele está pensando no que responder. Mas eles são interrompidos por um barulho lá fora, e depois não retornam àquele ponto da conversa, como sói acontecer. Mas entendemos que o Jimmy ficou aliviado com o desvio de assunto, aliviado de não ter que lidar com aquela oferta em que não podia enxergar valor.



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