O prefácio de Balzac à Comédia Humana é um pouco assustador

O prefácio que Balzac escreveu à Comédia Humana chega a ser meio assustador. Lê-lo é como ouvir pronunciar-se um gigante em sua voz cavernosa e trovejante.

A primeira ideia da Comédia Humana nasceu de uma comparação “entre a humanidade e a animalidade”. Balzac cita as ideias de diversos autores das ciências e da filosofia que mais tarde encontrariam em Darwin a sua expressão mais plena. Para Balzac, existem espécies sociais assim como existem as zoológicas — assim como há o corvo, o leão, o crocodilo, o macaco, há também as espécies sociais do advogado, do sábio, do desocupado, do soldado, do comerciante, marujo, poeta… Mas há fatores complicantes: na sociedade, a dessemelhança entre o macho e a fêmea pode ser muito maior do que a encontrada na natureza. Na natureza, há poucos dramas, pois os animais “se atiram uns sobre os outros, e eis tudo”. Entre os homens acontecem os mesmos conflitos, mas os graus variados de inteligência entre um indivíduo e outro tornam a luta muito mais complexa. Os hábitos dos animais nos parecem sempre os mesmos, diz Balzac, mas os modos de ser, as vestimentas, as palavras e os objetos variam segundo as muitas espécies sociais e diferem de uma civilização para outra.

Trata-se então de um naturalista, de um escritor que registrará as pelagens e penugens sociais, registrando os homens como se fossem bichos, indiferente a qualquer coisa que indique o contrário? Não, diz Balzac: ele deveria antes estudar “as razões ou a razão desses efeitos sociais, surpreender o sentido oculto nessa imensa reunião de tipos, de paixões, e de acontecimentos.” Um investigador das superfícies, mas também das causas profundas — e, ademais, com uma filosofia clara sobre como se ordenam as coisas, opiniões claras sobre moral e política. O cristianismo, e especialmente o catolicismo, diz ele, sendo “um sistema completo de repressão das tendências depravadas do homem, é o maior elemento de ordem social”. “O cristianismo criou os povos modernos, ele os conservará. Daí, sem dúvida, a necessidade do princípio monárquico. O catolicismo e a monarquia são dois princípios gêmeos.” Logo depois, porém, defende a eleição como um ótimo meio de constituir a lei — e esclarece que só a rejeita enquanto único meio social.

Apesar de afirmar o cristianismo como a “única religião possível”, demonstra seu interesse pelas pesquisas sobre o magnetismo animal feitas por Mesmer, pioneiro nos estudos sobre as questões paranormais. “Em que os dogmas católicos ficariam com isso abalados?”, pergunta. Apesar desse catolicismo declarado e convicto, até mesmo militante, reafirma-se um escritor que trata de imoralidades — a censura por imoralidade, sofrida por ele, é algo a que nenhum escritor corajoso escapa. Logo depois, citando pelo nome várias personagens suas, entre elas o maravilhoso juiz Popinot de A Interdição (e não sei se de outros livros também), afirma nelas ter resolvido “o difícil problema literário que consiste em tornar interessante uma personagem virtuosa”.

Parte de uma comparação entre os homens e os bichos: tem uma mente de naturalista, de zoólogo, mas é católico. É católico, mas se interessa pelo espiritualismo. É monarquista, mas simpático às eleições. Observador das superfícies, mas investigador das causas profundas. Interessado em descer às minúcias tanto da virtude quanto do vício.

O gigante, com sua força imensa, é capaz de cavar mais fundo. Observando tudo mais de cima do que nós, enxerga e abarca polos opostos, vê (ou ao menos pressente) continuidades onde para nós existem apenas contradições. 

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